quarta-feira, 26 de março de 2008

Por seus olhos escrevi

Foi o olhar. Sim, Clarice reconhecia aquele olhar. Voltou-se para seu amigo inseparável, seu diário, para lhe escrever, já que as lágrimas se recusavam a escorrer-lhe a face. Era assim para ela. Sem dor, com muita intensidade. Um dia escutou que a dor é inevitável, o sofrimento é opcional. Não queria sentir, mas precisava. Da infância tinha o colorido. Do amadurecimento o aprendizado. Sentou-se, não queria perder muito tempo para começar escrever sua carta. Não era despedida, nem agradecimento, muito menos um olá. Era apenas reconhecimento. Daquilo que fora sua doce presença. O olhar. Verde, castanho, preto. Azul da cor do mar. A cor dos olhos não importava para ela que sabia que postaria a carta feita ao remetente certo. Com alguns rascunhos no lixo começou:
- Escrevo-te por estas mal traçadas linhas meu caro, o quanto ponho em minhas palavras a saudade de ti sentir. Há muito não lhe vejo. Mas a saudade de sua amizade se faz presente em seu olhar. Brando, sereno, cor de água. Azul nos dias bons, verde nos incertos. Vivi e aprendi. Recitar-lhe uma poesia é a certeza que nos aproxima.

Pra ti, lhe prometi
Cumplicidade, amizade
Mas foi na lembrança
Da distância, que percebi
Nas neves de sua cidade
Minha mera esperança
De um dia lhe olhar
No imenso amor de sua felicidade.

Vibrante alegria


Era um dia comum. As pessoas, claro, não eram comuns. Faziam parte de uma realidade que há muitos não pertenciam. Risadas, na verdade, gargalhadas, unia essa gente. Tão simples nos sentimentos, mas tão grandes na capacidade de sentir. O motivo, um jogo na TV, não mobilizou muitos, mas o suficiente para que a festa estivesse pronta. A amizade estava ali. Na sala, o ambiente de vibração e gritos. O manifesto estava pronto. Camisas a postos, sorriso nos lábios, era o manifesto brasileiro. Um dos desejos mais bem-vindos entre tantos seres que esperam uma vitória. Mas eles desconheciam que a vitória estava bem próxima a elas. Nada mais comemorativo do que ter uma sala cheia de gente. Gente pura, verdadeira. Gente da paz, da vida. O gol demorou a sair, mas saiu. A vitória esperada foi encontrada. Não pela bola na rede, mas pelo momento que ali estava no tempo. O tempo que se foi. O tempo que ficou.

* Aos meus queridos amigos que enchem a sala de alegria. Aos camisas verde amarela; branca e preta; preta, vermelha e branca, aos sem cores e aos sem camisa, enfim a eles, sempre.

A Vida no Olhar das Borboletas



Assim começo

Ver pela fresta
Intensamente, inexplicável
De um jeito
Ameno, amigo, amável

Notando quantos
Olhares perdidos

Ostensivos, verdadeiros
Lembram a
Hora que não querer parar
A vida que não quer ficar
Recebida de mãos beijadas

Dedilho
Ali e aqui
Sonhos, sonhadores

Belezas
Ora por você
Respeitável em suas
Benevolências
Ora por ela
Livre, lírica, linda
Esperança de encontrar
Tamanho na
Altura do
Sentido de ser, seremos
* para relembrar minha adolescência, quando adorava brincar de fazer acrósticos.

terça-feira, 25 de março de 2008

Nas paredes do casarão

A gargalhada ecoou pelo ambiente e quebrou o silêncio. Em volta da grande mesa de madeira a família se reunia. Um costume que se arrastava há anos e que unia os mais diversos sentimentos. Entre uma conversa e outra uma fartura de doces em compotas, guloseimas, pães e sucos. Quase tudo feito na hora, no calor do dia, com o forno de testemunha. A algazarra tomava conta do casarão. Nas paredes, marcas de uma história de gerações escrita por José e Ana. Ele, apesar de pequeno na estatura era grande na capacidade de ajudar os que lhe pediam. Forte, perspicaz era uma aroeira em forma de gente. Companheira, sempre ao lado de José, ela tinha a voz branda e o olhar seguro. Juntos, sentados, andando, colhendo, eles plantaram sementes e recolheram flores pelo caminho. Frutos de um amor arranjado, prometido, mas consumado. De Ana nasceram os filhos. À mesa se portava os netos e era assim que Marina se recordava. Passado dez anos, a moça de pouca fala e cabelos escassos, se calou pela distância. Saudosa, Marina percebeu que havia crescido. O tempo não estava ao seu lado, pois o achava rápido demais. Os ponteiros do relógio de bolso, herança de seu avô, passavam acelerados aos seus olhos. Sim, ela cresceu. E com ela, veio o desgosto da separação, que para ela, era seu maior pesadelo. O crescimento lhe trouxe amadurecimento. Sim, ela reconhecia. Mas com ele, de mãos dadas, veio a saudade. Palavra que martelava seu coração. Como doía sentir a distância. A larga estrada que a separava de tudo aquilo que amava. Sozinha, continuava sua história, não completamente da maneira que queria, ultrapassando os percalços, mas seguindo seus passos junto a ela. Do amor se fez a lembrança. Da saudade a eterna criança. Da infância a mesa farta. Da fartura a família que amava. Adormeceu sentindo nas paredes parte daquilo que lhe pertencia nos doces sabores de uma enorme distância.

* Em especial às pessoas que me amam incondicionalmente e que estão no meu caminho para que eu seja um ser melhor nesse mundo de verdades e presentes.

quarta-feira, 19 de março de 2008

Nas entrelinhas das cores


Já passava da meia noite quando Clarice conseguiu terminar um importante texto para a próxima edição da revista Atípica, que inclusive lembrou-se que já passara de seu deadline. Cansada, com as idéias ainda cambaleando em seu pensamento, ela não resistiu à tentação de escrever em seu diário. A escrita a consumia e ao mesmo tempo alimentava seus irregulares pensamentos. Rodopiavam em sua mente extraordinária e não lhe davam sossego. Eram muitos, em quantidade incontável, brincavam dentro de sua caixa, indecifrável para qualquer estudioso. Seu diário era seu porto-seguro, onde declarava amores, respondia suas mais sombrias dúvidas e compartilhava pensamentos inerentes e perdidos no tempo. Além de seus desejos eróticos, não muitos, mas que sempre rondavam por sua galáxia chamada cérebro. Mesmo se sentindo sozinha, não admitia querer um parceiro que lhe aprisionasse, lhe arrancasse as forças do fruto proibido. Gostava era de ser livre e em seu diário expor suas aventuras imaginárias. Em seu pequeno quarto, de janelas amplas, que proporcionava um ar fresco a noite toda, Clarice se entregou ao seu pequeno companheiro. Com caneta esferográfica nas mãos, sua preferida no testemunho, começou a rabiscar as primeiras linhas de uma página qualquer;
- Há meu caro, de onde vem o instinto impulsivo em transpor nessas linhas e folhas brancas tamanha sensação de prazer. É aqui, sem cesura e críticas, apenas as minhas, que me liberto e solto todos os meus mais impetuosos suspiros. Transbordo a alma, mesmo sem entender muito bem como fazer isso, apenas arrisco e nesses rabiscos me sustento. Sei que um dia colarei algumas fotografias nessas páginas. Um pouco de colorido, já que pinto suas páginas apenas com a cor azul, não que goste menos, mas precisamos alegrar nossos dias com vermelho, amarelo e rosa. Sem contar o verde, que em seu tom mais fraco remete ao equilíbrio quando nos lembramos dos tapetes divinos. Além do azul Portinari, que nos faz viajar ao mar, ao céu, como pássaros em busca de liberdade e paz. Assim como eles me volto a você como um amigo confidente, fiel. Nunca me abandona e ao meu lado ficará mesmo que cometa erros e deslizes. Não me julgas, pois sabe que os erros são humanos e reconhecê-los um mérito. Me ama, pois sabe que apesar de pequena, meio desengonçada, o que mais vale é o brilho em meus olhos. Me quer, porque como a raposa disse ao Pequeno Príncipe, você parefrasea dizendo que me torno eternamente responsável por aquilo que cativo. Assim sem pormenores, te digo meu caro amigo: por você sou mais inconseqüente, mais coração e menos razão. Por você, escrevo em suas páginas para um dia, quem sabe, cativar mais um amigo, sabendo, nas entrelinhas, quão humana sou, mas quanta capacidade de amar há dentro desse pequeno diário...

segunda-feira, 17 de março de 2008

Desenhar o D


Com o D que me emprestou, fiz o dia. Dentro dele fiz delícias e doçuras. As travessuras deixei de lado, para que o doce desejo não tomasse conta de meus dedos. Pelo D, dancei ciranda num dia digno de criança. No D, levei o dado e o disco, no girar da roda, dei um suspiro e um dengo no tentar. Com o D que me emprestou, me deliciei no danone, fiz desenhos nas nuvens, deitei nas dunas e disquei sem dedurar. Pelo seu D eu dou um dote pra contigo desvendar o doce desejo de dialogar.

Uma arriscada poesia


Num pequeno rascunho combino palavras
Em versos e prosas senti a primavera
Com ela veio você no colorido das flores
Pequenos gerânios a estar pelo caminho
Sigo seus passos em busca de respostas
Você me olha e me deixa sem provas
Procuro na sombra sua silhueta sem volta
Me acho um quê de esperança
No olhar daquela criança
Se desperta há uma distância
Meu amado venha sem pressa
Que aqui em sua lembrança
Me faço de sua passagem
A chama de um fogo que queima
Reascende uma leve discrepância
De que o novo sempre vem.

Reencontro



Era noite quando Alice abriu seu baú. Sem saber o que procurava ela revirou as cartas, fotos e objetos deixados lá. Esquecidos e trancafiados há anos, não sabia ao certo o que encontraria. Uma caixa de boas lembranças ou amargas recordações? Sem se importar muito com o casual desencontro do tempo e espaço, Alice se entregou ao misterioso sentimento do despertar. Com os olhos reluzentes, como de quem descobre um tesouro, viu em seu pequeno baú parte de uma vida deixada pra trás. Mas por quê? Por que me esqueci os instantes e momentos de uma vida de encontros e reencontros. Por que guardei nesta caixa, velha e gasta, uma parte vivida e saboreada? Se perguntou Alice, antes mesmo de folhear alguns esboços de frases não ditas. Agora era tarde, pensou. Uma palavra não dita é como um sentimento sombrio, que não volta mais. Não posso expressar tamanho arrependimento, relutou antes de voltar ao desconhecido. Revirou outros rascunhos, cartas, bilhetes, pedaços de papéis sem cor, sem calor. Olhou mais ao fundo e lá estava. Mas será isso que procurei por todos esses anos? E foi. Uma foto, já amarelada pelos anos escondida dentro de uma caixa, mas que ainda estava viva na alma de Alice. Seu coração lhe trouxe a tona um momento nostálgico. Parou, sentiu que seu peito palpitava, as batidas ficavam cada vez mais intensas. Era ele. Procurou por tantos anos sua imagem, hoje refletida num pedaço de papel. Procurou seu cheiro, suave presente. Procurou embaraçada desvendar seus pensamentos. Queria decifrar sinais, ler o que se passava em sua mente. E por um segundo, o sentiu ali. Em seus braços, em seu corpo robusto e forte, sentiu a segurança que outrora tivera. Feliz, observou seu doce sorriso, seus lábios a aqueceram e seu medo passou. Se envolveu e deixou que aquele prazer tomasse conta de seu corpo frágil. Sabia que aquele reencontro a levaria há um novo mundo, ao tempo que Alice buscou em seu baú. Sem temer se entregou ao sentimento de conforto. A felicidade estava ali. Suas lágrimas escorreram por sua face, mas não eram gotas de tristezas, e sim, de amor. Sim, ela o ama. Ama o jeito que se movimenta. O modo como lhe olha com calma e encanto. Os trejeitos para fazer-lhe uma surpresa. Era ela refletida em seu olhar. Ninguém a quis como ele. O amor, há, como o bem-amado é fruto de uma busca incessante. E ali, ela sabia que sua procura havia terminado. Confortada, encostou-se em seu ombro. Macio, firme, deixou-se levar pela eterna sensação de bem-estar. Tudo fazia sentido. Tudo ali era pra ser vivido. Alice sabia. O reencontro foi inevitável e o amor transbordou qualquer sentido.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Segredos


Pela janela as gotas escorriam. Caiam vagarosamente. Gotas, muitas delas. Deslizam pelo vidro, como quem desliza por uma vida. Pequenas partículas, lágrimas, que escorrem com um semblante transformado-se em plenitude. Um deslumbre para ela. Pequena, mas notável perante o que vinha por vir. Elisa olhou o relógio e viu que as horas não estavam a seu favor. Esperou, sábia, com a sabedoria do tempo, de que quem espera por mais um dia com a alma pura. E foi com essa pureza em seu peito, ainda sentindo as verdades da vida que, mesmo pequena, mas grande n’alma, se transformaria em uma, não mais que uma, tentativa. Foi assim que Elisa olhou para dentro e viu um instrumento em seu peito. Daqueles que ela, ainda pequena, sentia tocar-lhe como quem toca n’alma. E veio, com as notas da flauta doce, na penumbra escura da noite, o sentimento. Sentiu o que estava ao seu lado, um suave violino. Cordas, uma mistura de símbolos, notas e cores. Foi assim, que mesmo sentindo-se pequena, Elisa olhou para dentro e viu que o mundo sorria pra ela. Sem um porque olhou para trás e percebeu. Num pequeno instante, apenas em um diálogo com os anjos viu, que o som da alma tocaria enquanto sentisse. Sem pestanejar, observou que muitos tons ainda não se formariam por estar só. Foi nessa melodia, de chuva e deslumbre, uma eterna saudade daquilo que outrora tocara nela, que Elisa sentiu então um puxão. Pensou por alguns minutos. “Acordo, ou vivo nesse eterno sonho que me transforma em um instrumento que nunca mais sentirei”. Sem notas, nem cordas, apenas a lembrança de que por um segundo lhe elevou ao sentido mais alto das sinfonias, como quem toca para os deuses uma melodia que nunca mais seria Elisa. E assim percebeu que as gotas que escorriam pelos vidros a transformaria em um enorme enigma. Sem decifrar o que sentia, decidiu esperar.

*Neste espaço, onde tento tocar com as palavras o coração, ofereço por meio de algumas imagens, ilustrar a história e os desejos implícitos de quem carrega a sensibilidade: foto Tânio Marcos

quarta-feira, 12 de março de 2008

Um tanto bem maior


Ah! Como é bom sentir. Feche os olhos. Navegue. Sim, navegar é preciso, deixe que as ondas façam sua parte. Sinta os grãos de areia fina sob os pés, a água em nuances mornos e gelados. Continue com os olhos fechados e sinta o vento. Ele vem acariciar a pele, ele canta, conversa, eleva a sensibilidade. Sinta o sol, sua doce quentura, seus raios penetrantes, a suave aventura pelo universo. Exalte a vida, brinde o amor. Olhe para trás e veja as pegadas deixadas no tempo. Sinta o cheiro leve da maresia. Deixe-se levar pelo mágico e imaginário momento de inspiração. Transpire. Eleve-se e veja o quanto é bom sentir. Permita-se, faça acontecer. Olhe para sol, o astro maior, mesmo que seus olhos lagrimejem, mesmo que não consiga abri-los, olhe mesmo assim com a janela da alma. Faça por você o que ninguém faria. Aconteça. Pense e concretize seus pensamentos. Transforme-se no que deseja ser. Comece de novo. Erre e reconheça. Peça desculpas, construa o amor. Suba as escadas e se sinta maior. Um tanto bem maior. Olhe para frente, mas não ignore o que ficou lá atrás. O passado nos pertence. Parafraseando Pessoa, que diz que tudo vale a pena se a alma não é pequena, atreva-se. Faça amigos, não muitos, mas o suficiente pra se sentir amado. Veja, nem que seja pelo menos uma vez na vida, o nascer do sol. Dê boas-vindas ao dia, há mais um dia, que não será igual ontem e nem como amanhã. Bem-vindo ao presente. O hoje, que seja único, ímpar, verdadeiro. Abra os olhos. Veja o que está a sua frente. Ame seu momento. Aproveite a exaltação e celebre a vida. Ame mais. Ame a pessoa em que você se transformou. Sinta com os olhos do coração e seja um tanto bem maior.


*Autora da foto, Carina Junqueira, um ser essencial em minha vida, no 1º dia de 2008, na praia Brava, em Florianópolis. Fomos agraciados pelo espetáculo divino da natureza, um privilégio estar vivo para contemplar tamanha beleza.

terça-feira, 11 de março de 2008

Sophia

Amanhece. No imenso horizonte o sol desponta. Em casa, Sophia sorri, um sorriso tímido, meio acanhado, mas verdadeiro, puro, sem malícia. Ali naqueles lábios pequenos, ainda por se formar, ela simboliza a inocência, a infância que se transforma em seu olhar em busca de um infinito ainda desconhecido. Pura, ela brinca em seu parque de imaginações. Uma roda gigante lúdica, que ainda nem começou a girar. Em seus olhos, transbordam a alegria, a fantasia chamada vida. Essa que Sophia ainda não desafiou entrar. Mas está em sua frente, esperando-a. Ela abre as portas, corre em direção ao jardim. O som da água escorre entre as pedras, macio, como se lavasse o caminho. Em seu jardim, Sophia encontra borboletas. Uma infinidade. Azuis, brancas, violetas, raras. Sorte, um deslumbre naqueles olhos despertos. A sua frente, tulipas. Um jardim de tulipas. Amarelas, vermelhas, rosas, com cheiro suave, cheiro de esperança, de vida que assim brota na sensatez de uma criança. Uma semente semeada de um fruto de amor. Bem-aventurados os ventres, a luz que se fez um dia uma vida chamada Sophia.

Devaneios


Em seus braços, ela sentiu uma onda de calor. Invadiu sua alma, sem pedir licença. Desamparada de seus devaneios loucos e sórdidos, ela se escondeu por entre o vago e o agora. Luciana sabia o que lhe reservava. As faíscas começavam a perambular no ar. Como que se cuspissem de seu corpo. Mas saíam da lareira. Nas lenhas, labaredas. Quente e vermelha, assim se sentia diante o inesperado. Sem saber pra onde correr se perdeu em seus pensamentos. Olhou ao redor e se viu sozinha, novamente sozinha. No agora de seu tempo lembrou-se de seu rosto juvenil, cheio de vida e inspiração. O tempo foi cruel com ela. Mas não por suas rugas e manchas, mas pelos traços marcados pela saudade e dor. Por que ele se foi? Sempre se perguntou. Não o encontrou nas estradas. Pelas pedras ultrapassou, nos riachos sentou e chorou. Sem compreender, o frio apossou de seu corpo quente. Um arrepio subiu-lhe a espinha. Não sabia de onde vinha tanta incerteza. O sentido de tudo isso? Queria saber mais que nunca porque havia lhe deixado no caminho. Amamos pra sermos abandonados, pensou novamente. Mas o abstrato virou concreto. E no chão ela sentiu seus pés. Seu olhar voltou-se para trás, apenas um vulto, uma sombra. Como o tempo cura as feridas, como ele recupera o sangue derramado e a lágrima escorrida? Nunca obteve respostas. Solitária, absorta em suas dúvidas, olhou pela janela, lá fora viu a vida. O vento soprava calmamente fazendo as folhas dançarem desconcertadas. Um ruído pelas frestas. Ela sentiu conforto. Sabia que num tempo, não muito distante, acharia o que ficou perdido. Deitou-se para esperar a dor passar. E não mais sentiu.

segunda-feira, 10 de março de 2008

Doce lembrança




Eram seis horas. O tilintar do relógio anunciava. No meio da parede amarelada, gasta pelo tempo, lá estava ele, imponente, com seu pêndulo se movimentando, como se dançasse a canção das horas. A chaleira assobiava. No fogão à lenha ela esquentava a água para o café. Num cheiro terroso, doce, cheiro de lembrança. Pela fresta da janela, entreaberta com a cortina à meia folha, via-se a sintonia de graça dos pássaros que perambulavam pelo céu, como se voassem pela liberdade ao cantar para mais um dia que chegava de mansinho. Os primeiros raios alaranjados do sol invadiam o quarto de Anita. À espera do café, ela cantarolava uma melodia, meio esquecida, apagada, como aquelas lembranças de sua infância. Ao seu lado, o porta-retrato lhe reportava a realidade. Nua, crua, mas destemida. Olhou pela janela e viu a fresta da manhã, de mais um dia. Da saudade, ela se fez forte. Das lembranças, ela se fez presente, intrínseca nas memórias mais vivas de sua doce vida. Sozinha, levantou-se de sua cadeira, o balanço continuou como que se ainda seu corpo ali continuasse. Calçou seus pés, cansados da longa jornada, e sentiu a maciez dos felpos de seus chinelos, aquecendo-os. Na cozinha, inerte em seus pensamentos, não conseguiu ver seu reflexo na água que se formou na pia. Sua alma não refletia. E por mais um dia lamentou-se por não olhar para si. Para dentro. Para aquilo que um dia foi. Se viu desolada, sozinha, não se permitiu. Ao lado da mansa manhã, naquele dia, que um dia se foi.

* minhas primeiras linhas, meio no improviso da noite, com um misto de linguagem e saudade. Uma lembrança do cheiro de minha infância, que recordo com muitos encantos e desencantos, e que aqui começo a compartilhar em ensaios acanhados, mas íntimos.