segunda-feira, 10 de março de 2008

Doce lembrança




Eram seis horas. O tilintar do relógio anunciava. No meio da parede amarelada, gasta pelo tempo, lá estava ele, imponente, com seu pêndulo se movimentando, como se dançasse a canção das horas. A chaleira assobiava. No fogão à lenha ela esquentava a água para o café. Num cheiro terroso, doce, cheiro de lembrança. Pela fresta da janela, entreaberta com a cortina à meia folha, via-se a sintonia de graça dos pássaros que perambulavam pelo céu, como se voassem pela liberdade ao cantar para mais um dia que chegava de mansinho. Os primeiros raios alaranjados do sol invadiam o quarto de Anita. À espera do café, ela cantarolava uma melodia, meio esquecida, apagada, como aquelas lembranças de sua infância. Ao seu lado, o porta-retrato lhe reportava a realidade. Nua, crua, mas destemida. Olhou pela janela e viu a fresta da manhã, de mais um dia. Da saudade, ela se fez forte. Das lembranças, ela se fez presente, intrínseca nas memórias mais vivas de sua doce vida. Sozinha, levantou-se de sua cadeira, o balanço continuou como que se ainda seu corpo ali continuasse. Calçou seus pés, cansados da longa jornada, e sentiu a maciez dos felpos de seus chinelos, aquecendo-os. Na cozinha, inerte em seus pensamentos, não conseguiu ver seu reflexo na água que se formou na pia. Sua alma não refletia. E por mais um dia lamentou-se por não olhar para si. Para dentro. Para aquilo que um dia foi. Se viu desolada, sozinha, não se permitiu. Ao lado da mansa manhã, naquele dia, que um dia se foi.

* minhas primeiras linhas, meio no improviso da noite, com um misto de linguagem e saudade. Uma lembrança do cheiro de minha infância, que recordo com muitos encantos e desencantos, e que aqui começo a compartilhar em ensaios acanhados, mas íntimos.

2 comentários:

Unknown disse...

Que linda você é, amiga!!! Felizes aqueles que podem não somente compartilhar suas palavras, mas também estar perto de ti. Precisamos sempre olhar pra dentro, sempre!!!

Luciana Cecchini disse...

Lindo, Anita! Poético, sensível, rico. Você escreve com a alma...
Sua alma refletida aqui, amiga!

Belo começo!


Bjo no seu coração!